domingo, 29 de agosto de 2010

Floresta Macabra

Imagine acordar numa floresta ao lado de um lago que cheira a morto, onde tudo é venenoso e meu único amigo é um corvo falante? Seria fácil viver nisso se isso não fosse somado ao Vagante... não sei ao certo o que é isso, nem o que faz, mas sei que ele matou toda a vida nessa dimensão e meu único motivo, aparentemente, de estar ali é para ser alimento dele, quase como um trabalho cósmico. Topa acompanhar minha desventura?
Lá estava eu no inferno – se bem que o verdadeiro inferno não deve ser tão ruim, pois creio que só exista um espécime igual ao que me persegue e, infelizmente, ele está vivo –. Não sei como vim parar nessa floresta, mas desejaria me matar se soubesse... É o castigo mínimo por eu ter feito qualquer consequência que me levasse para o que gosto de chamar de “Floresta Macabra”, se bem que não dá para chamar isso de uma floresta. As florestas que conheci pela minha vida eram lugares felizes, cheios de verde, que nos proporcionavam oxigênio e eram algo que devia ser protegido... Acho que um monte de vegetação morta regada a frutos podres e aquela coisa não me parece uma coisa que nem o maior defensor da natureza possa chamar de floresta – até porque isso não pode fazer parte da natureza, se Deus existe, ele não permitiria.
Só me lembro de três coisas, nitidamente, que aconteceram em toda a minha vida:
1° Minha primeira transa. Foi com uma menina alta, de cabelos loiros, um tanto quanto gorda e com uma pele branca como leite... Foi a coisa mais sensacional que já fiz dentro de um banheiro para deficientes.
2° O nascimento do meu filho. Não por ele ser algo especial na minha vida, mas por não acreditar numa cena tão horrível quanto a da cabeça dele arregaçando a vagina da minha mulher.
3° Meu primeiro contato com a Floresta Macabra, que é, afinal, o assunto dos meus relatos:
Nenhuma dor de cabeça, sonolência, retardo, tosse, espirro, coceira, nada. Parecia que eu tinha dormido e fui, andando sonâmbulo, até o Lago Morto – não sei se esse era o nome dele, mas eu o chamava assim.
Acordei com o fedor que o lago me proporcionou. Era algo putrefato, algo como animais em decomposição, ou pior... Acho que nem os abutres tinham coragem de chegar perto daquele rio. Ele tinha, realmente, cheiro de morto, por isso dei o nome a ele de Lago Morto.
No começo fiquei desesperado. Os primeiros cinco dias foram de puro caos, daí eu percebi que eu só estava perdendo energia fazendo merda ao invés de procurar água ou comida. Minha sede já estava chegando ao seu limite, a ponto de até a água de cor verde com uma textura que aparentava ser gosmenta que o Lago Morto proporcionava parecia ser “tomável”.
Há momentos na vida, como os que eu passei no início da minha rotina na Floresta Macabra, onde sentimos necessidade e arrependimento da mesma coisa. É quase como chorar e acabar rindo. Eu daria tudo por um cigarro, mas eu esmurraria logo em seguida a pessoa que me deu o cigarro, justamente por te me dado ele. Meu pulmão carregava 50 anos de vida, sendo 30 a base de duas carteiras por dia... Até dois anos atrás não conseguiria fugir do Vagante.
Não achei nada para comer até o sétimo dia e, na verdade, se continuasse a viver como vivi até esse dia teria morrido logo na primeira semana.
Quem não tem cão caça com gato, diria algum idoso “boa praça” que gostaria de pagar de sábio – sorte minha que eu nunca conheci nenhum –. E foi isso que eu fiz. Baixei meus padrões e me submeti a tomar a água do Lago dos Mortos e hoje em dia me arrependo, não só pelas doenças que tomar aquilo me proporcionou, como pelo que eu achei lá dentro. O gosto da “água”? Imagine que você comeu o pedaço de um corpo e vomitou esse pedaço no resto do corpo, depois cagou encima do corpo e misturou tudo numa sopa. O gosto é algo próximo disso.
Em meio a uma forte dor de barriga causada pela “água” que eu tomei tive a visita do meu único amigo e jantar durante minha estadia na Floresta Macabra: Corvo Lady Katerine – que embora o nome feminino, ele era um macho. Corvos falantes são excêntricos, pelo menos é o que me parece.
O lado positivo de estar num lugar sozinho é que você pode fazer o que quiser e o lado negativo é que não tem nada de legal para se fazer... mas de qualquer modo, o ponto que quero chegar é: Eu não estava com disposição de procurar um banheiro ou um arbusto que não parecesse ser venenoso – pasmem, mas toda vegetação que ainda consegue viver aqui é tão venenosa quanto uma cascavel –... Então fiz todas as minhas fezes num local aleatório, não creio que a floresta tivesse algum lugar mais agradável, sem o cheiro do Lago dos Mortos, e para ser sincero, hoje em dia, duvido que esse lugar tenha fim.
Quando eu ia me limpar com uma folha do arbusto venenoso, ele chegou soturnamente me avisando entre barulhos esganiçados:
– Se eu fosse você não se limpava com isso
Olhei para trás com medo e confusão. Ninguém espera que alguém com uma voz estranha apareça atrás de você numa floresta estranha enquanto você limpa a bunda...
O que encontrei quando olhei para trás só aumentou meu medo e confusão. Juro por tudo que é importante que o Corvo não só piscou para mim, mas também tentou me mandar um beijo... Meu primeiro contato com o Corvo Lady Katerine...
– Hã? – respondi abismado.
– No limpie el culo com esto, da uma picación tremenda – respondeu o Corvo.
Limitei-me a olhá-lo com uma cara ainda mais confusa e repetir:
– Hã?
– それをあなたのお尻を拭くしないでください大きなかゆみを与える。
Repeti o mesmo som, só que dessa vez mais esganiçado.
Cansado de tentar línguas exóticas – para você espanhol pode ser uma língua fácil, mas no meu colégio, na minha época, francês e latim eram as línguas ensinadas...
– Do you speak english?
Também não entendia inglês, mas o sotaque me parecia ser inglês, então me dirigi a ele com a única frase que eu sabia nessa língua:
– I only speak portuguese...
– Então que falemos nessa língua meu caro... Nunca te vi aqui. É novo?
– Não sei... acho que sou, não lembro de ter feito muitas coisas aqui, mas com certeza foi mais de 1 dia, porém aqui sempre esta nublado, não vi a noite nem o dia...
– Dia? Noite? Veio do Universo, presumo...
O modo que o Corvo falava era extremamente irritante, mas ele tinha conseguido minha atenção. No momento, era como se a fome, a dor, a preocupação, tudo tivesse sido aliviado, não apenas pela sensação de conversar com um corvo falante, mas também por ele poder me ajudar a ir para casa – ou a me matar, no momento preferia pensar que ele ia me ajudar. Ser positivo me impediria de me matar...
– Hã? – respondi disfarçando um sorriso, que mais tarde poderia vir a ser um riso, o qual parecia querer ser estampado na minha face sem nenhum motivo.
– Bem vindo a minha dimensão...
– Aqui é tipo outro planeta? – falei num tom zombeteiro que deu nojo até em mim mesmo.
– Não. Até onde sei só há vida em um planeta do Universo, o resto é tudo enfeite por enquanto, mas, claro, quando chegar a hora do fim desse planeta os outros planetas vão começar a serem ocupados por vocês próprios... É algo difícil de explicar.
– Como você sabe disso?
– Porque é o que aconteceu com todas as dimensões... Mas no fim todos morrem mesmo, é algo inútil, mas, claro, você vai estar morto quando isso acontecer.
– Bem, que se foda, aliás, eu to numa outra dimensão, não? Que se chama...
– Imagine um nome, porque aqui não tem nenhum. Essa dimensão seria apenas uma gota de água do lago ali perto, aqui é no máximo um pesadelo em um sonho de uma menina de três anos...
O corvo grunhiu de modo que meu ouvido doesse muito, mas estava pouco me fodendo. Era um corvo falante!
– Muitos de outra dimensão vem parar aqui para o equilíbrio do lugar... O Vagante é o único ser aqui que precisa se alimentar... mas o que ele come não pode ser encontrado aqui.
– Então eu sou a comida?
– Bingo!
A sensação extasiante de conhecer um corvo falante já passava, o medo era a primeira sensação que voltava a me perturbar, as outras, por enquanto, pouco me importavam.
– Bem... você não perguntou, mas ninguém pergunta. Meu nome é Lady Katerine. O seu é...?
Nome... Nome... Não me lembrava do meu próprio nome! Calma. Já vai... Lucas! Isso.
– Lucas.
O corvo deu o que pareceu um riso, acho que ele notou que eu demorei a responder, pois eu estava desorientado ou quem sabe era uma piada interna, um tipo de jogo com todas as pessoas de outra dimensão que chegam até ele...
– Quer que eu te ajude a achar alguma coisa para comer?
– Eu pareço um corvo que come minhocas?
Ruborizei, mas eu realmente não sabia o que um corvo comia... Esse parecia comer gente, mas ele disse que não comia nada... Mas e se ele comesse? E se ele tentasse me comer? E se não? Sim? Por que não?
Aqueles olhos pretos não me transmitiam nenhuma sensação além do vazio... Mas não existe vazio, apenas o desconhecido – que o vazio não existia, eu já desconfiava e aqui na Floresta Macabra eu confirmei minhas desconfianças –. Seja como for, Lady Katerine escondia algo que eu provavelmente não quereria descobrir... Mas sabem como dizem: “A curiosidade matou o gato”.
No fim meu silêncio constrangedor foi o suficiente para o assunto das minhocas ser resolvido...
A sensação de irrealidade que estava tendo havia acabado, era hora de voltar à realidade, por mais estranha que fosse. Não me preocupei em achar algo para limpar a bunda pela minha desconfiança de tudo ser venenoso... Ergui as calças e fui a seguir meu novo amigo.
Ele me levou até um buraco, na hora me lembrei de Alice no País das Maravilhas... Quem me dera estar naquele lugar, o maior perigo para mim seriam cartas falantes gigantes, porém aqui eu teria que lidar com a fome, as doenças, a solidão – vide O Iluminado que me entenderão sobre isso ser um medo meu sério – e um tal de Vagante o qual Lady Katerine se referiu, porém só vim a perceber o perigo depois que o assunto já tinha morrido...
O buraco, por dentro, era como uma mina de mineração, semelhante as que imaginamos que eram antigamente... Era um buraco que com o percurso ia descendo suavemente para o fundo, sempre com vigas de madeira sustentando a terra e lanternas colocadas lá estrategicamente de modo que o local fosse perfeitamente iluminado.
– É aqui que você trabalha? – perguntei buscando quebrar o silêncio e começar alguma conversa.
O corvo novamente deu o que parecia ser um riso e novamente com sua voz irritante – admito que antes de conhecer Katerine nunca tinha ouvido um corvo, mas sei de onde veio expressão “voz de gralha” – respondeu:
– Trabalho – riu –? Aqui é minha casa.
Ruborizei novamente, mas não sei por quê.
O assunto havia morrido novamente, andamos silenciosos até quase chegarmos ao fundo da caverna, onde não havia mais luz...
O medo era inevitável naquele lugar, andava com passos lentos e calculados e balançava as mãos pelo lado, esperando que isso afastasse qualquer coisa que pudesse querer me atacar futuramente.
Meu coração batia mais rápido a cada passo
Tunch Tunch! – gritava meu coração
Tunch Tunch – começava ele a acelerar, sem falar mais alto.
Passei por uma pedra que quase me fez escorregar...
Tunch Tunch – agora mais influenciado do que nunca a bater cada vez mais forte.
Não queria correr, mas a necessidade de achar a luz no fim do túnel – se é que existia luz no fim daquele túnel – era enorme. Não podia me conter e comecei a correr, incentivando meu coração a bombear mais ainda. Quem sabe eu teria um ataque cardíaco bem dentro da caverna onde meu corpo dormiria na escuridão e minha alma seria afundada em outra.
Sem saber o que me aguardava a frente, bati com tudo em algo...
Caí de mau jeito na coisa. Meu coração bombeava tão fortemente que cada batida podia ser minha última.
Gritava incessantemente, de modo que fez Lady Katerine gritar também, fazendo que se tornasse insuportável ficar na caverna graças ao eco dela que reforçava os meus gritos e do meu amigo corvo.
Tunchtunchtunchtunch – parecia que meu coração fazia um único barulho, sem pausas.
Esperava ser comido pelo me derrubou. Seria aquele o tal Vagante que era, teoricamente, o motivo de eu estar aqui? Será que minha vida acabaria em uma mina escura ouvindo como últimas palavras um grito estridente de uma gralha?
Dor... Dor?
Nada aconteceu, haviam se passado 30 segundos e eu não tinha sido devorado. O que era aquilo?
Tateei o que era para ser o meu temido assassino: era frio, de forma quadrada, baixo, de apenas um metro de altura, acho eu e não tinha pés na base, mas sim rodas... Que porra era aquela?
Puxei a coisa pelo que parecia ser seu braço e logo ela me obedeceu sem dar nenhum barulho a não ser dos seus “passos”.
Quando conseguiu levar a coisa até a luz não consegui segurar meu riso histérico ao descobrir o que era aquilo: UM MALDITO CARRINHO DE MÃO!
Ri por o que devia ser uns 30 segundos enquanto Lady Katerine olhava para mim sem entender nada.
Depois de rir o suficiente pensei numa coisa curiosa: aquilo era muito grande, bruto e, sem ofender a inteligência dos corvos falantes, muito elaborado para não ter sido feito por humanos, então a imagem do quão horrível devia ser o Vagante passou na minha cabeça e o que ele devia ter feito com essa dimensão e como ela pode, algum dia, já ter sido algo próximo da dimensão em que eu vivia.
– Quem fez isso? – perguntei em sussurros, sem saber por quê.
– Não sei, já estava aqui quando cheguei...
– Quantos anos você tem?
– Não sei nem o que é isso, caro amigo.
Estava dando algumas viravoltas na conversa, mas a cada pergunta via como eu estava fodido, então fui direto ao ponto:
– Quantos você já viu passar por aqui?
– 20 ou 21.
– Algum sobreviveu?
– Todos eles fizeram algum erro fatal, creio eu que você não vai fazer nenhuma burrada.
Senti que não devia perguntar que erro, então não perguntei e deixei a tal dúvida se remoer na minha cabeça.
Voltei para a escuridão, porém, agora, com passos normais, acho que porque aquele MALDITO CARRINHO DE MÃO me mostrou que o único risco não estava na caverna, mas sim, conforme Lady Katerine, nas burradas, que foram erros fatais... Mas como ficar na linha num mundo que nem sequer tem noite e dia?
Conforme eu ia avançando meus olhos não estranhavam tanto a escuridão com o tempo a visão do nada se tornava até agradável, de certa forma, porém no fim do túnel havia luz – poético, não?
A iluminação do fim do túnel, ao contrário do resto, era natural, porém extremamente bizarro, tal como quase tudo dessa porra... Falo de baratas brilhantes em um ninho.
Como posso descrever essa visão, digamos, psicodélica? O ninho era como o de abelhas, mas transparente com um verde suave e vários furos, que acredito eu, eram para as baratas poderem respirar, enquanto que os malditos insetos brilhantes lá dentro eram, aproximadamente, uns 10 centímetros maiores que as do Universo, porém incrivelmente mais nojentas... digamos que elas fodiam sem cerimônia... Espero que você nunca veja uma foda de barata brilhante, é nojenta.
– Com fome? – perguntou Lady Katerine, pelo jeito, sem perceber minha cara de nojo ao ver as baratas brilhantes.
Engoli seco a minha ânsia e fiz que sim com a cabeça, sem saber o que meu amigo corvo planejava me dar para comer.
– Pode se servir – disse ele.
– Com quê? – perguntei com uma cara aparentemente vazia, mas que escondia medo, ansiedade, ânsia e fome ao mesmo tempo.
Ele voou até perto do ninho de baratas brilhantes, agarrou-as e as trouxe para mim, como se dissesse: esta aqui, coma a vontade.
Não quis ofender ele e então, peguei uma das baratas, ela se remexia nervosamente como se ela soubesse o que a esperava, mas ignorei o fato e pensei que aquilo era um suculento pedaço de costela – e pelo tamanho, formato e líquidos que a barata soltava, que era como gordura de carne, não era difícil de imaginar tal –, mas quando já iniciava o movimento de levar o inseto à minha boca o corvo me impediu:
– Não vai fritá-las primeiro?
Um certo alívio me veio a cabeça... pelo menos as baratas estariam fritas.
“Tchisk tchisk” – faziam os pés de Lady Katerine, que, estranhamente, pouco ciscaram no chão da caverna – que era de um material sólido que eu desconhecia – e já fizeram o fogo, com uma grande e majestosa chama vermelha intimidante. Tinha me esquecido de como eu gostava do fogo.
Quase que em sensação de deslumbre novamente, agora por uma fogueira do que por um corvo, coloquei os insetos luminosos na fogueira sendo eles espetados por um tipo de palito de ferro que estava próximo de mim... Em segundos tive meu primeiro petisco em tempos, o qual chamava de fritas vivas – se eu lançasse o petisco sem divulgar a receita o nome poderia trazer um grande sucesso ao prato, que por sua origem chamo de exótico.
O gosto não era ruim, acho que pela fome, mas decidi não repetir o prato quando meu estômago me alertou que estava satisfeito, devido ao certo preconceito que eu ainda guardava de estar comendo baratas, mas no fim a água me deu todo tipo de doença e as baratas só encheram minha barriga... Enfim, tem coisas que não podemos lutar.
Comi em silêncio, mas após a refeição decidi arrumar conversa novamente, tanto pelo prazer de ouvir sua voz saindo – sem nenhum motivo de loucura, falando sozinho –, tal como o da minha curiosidade imensa que estava acumulando sobre a vida do meu, até então, único amigo na dimensão que eu chamo de Floresta Macabra.
– Me conte sobre você, Katerine... não conheço você direito e você tem me ajudando tanto...
– Nem se preocupe conhecer espécies novas, além do mais desde que o Vagante chegou todos saíram daqui, só que não sei para onde, senão iria junto – Lady Katerine finalizou com uma risada, mas diferentemente de tudo que eu já ouvi vindo dele era suave e depressivo.
Ele deu uma respiração um tanto quanto profunda e depois continuou:
– Mas não vá me paparicar, comigo você não vai para a cama – disse ele, mas acho que ele não havia entendido a piada que tinha feito, apenas falou.
Queria continuar a conversa, mas caí num sono profundo e sem sonhos, o dia tinha sido desgastante, mas aqui na Floresta Macabra todos são.
Entre conversas que devem ter durado uma semana – pois tive sete sonos, o que pelas minhas contas da uma semana – eu aprendi muitas coisas, tanto sobre Lady Katerine, como a Floresta Macabra ou como o Universo:
1° Só fui descobrir que Lady Katerine era macho depois de três dias...
2°Quando uma pessoa desaparece no Universo não só pode ser conseqüência de ele ter sido sequestrado, como também ter sido sugado para uma dimensão paralela, como é o meu caso.
3°Podem haver outros iguais a mim em outras dimensões.
Outro fato interessante é que eu não tinha sede, pois de acordo com Katerine meu corpo se adaptou a não sentir mais sede ao tomar da água do Lago Morto, pois a água dele funciona como uma coisa suprema que completava uma satisfação eterna de uma necessidade, algo que ele chamou de elemento elemental – sendo que, não sei por quê, sempre acho graça nesse nome, porém não o suficiente para rir.
Você pode estar achando tudo isso foda e que eu devo estar bem feliz e louco, apenas curtindo essa dimensão onde fui parar e aproveitando a vida até ser perseguido pelo Vagante, o que seria totalmente psicodélico , mas vocês nunca dormiram numa caverna feita de uma mistura de diamante e carvão – se bem que no fim é tudo a mesma coisa, ha ha –, comeram uma barata brilhante ou ficaram semanas com o gosto de água putrefata na boca... queria minha vida de volta e queria uma refeição melhor...
Todas as noites Lady Katerine me contava alguma coisa interessante para mim, alguma coisa que nem o mais afetado com o alucinógeno mais forte poderia imaginar, mas não na penúltima noite que eu era amigo dele, naquela noite ele me descreveu algo que todos conseguimenos imaginar e alguns até o temem, mas ninguém realmente achou que ele existisse... Essa coisa não tem nome definido, mas ela é uma das opções de monstro quando queremos pensar em um.
Olhos vermelhos, um grande cabelo liso e branco, uma pele cinza, dentes um tanto quanto pontiagudos e uma roupa em farrapos composta por um casaco e uma bermuda que mal escondem o físico invejável dele. Consegue imaginar? De acordo com Lady Katerine isso significa que se conseguimos imaginar é porque – em alguma dimensão – isso existe ou vai existir... E o pior, quantas mais pessoas puderem imaginar o monstro significa o quão poderoso ele é, tem algo a ver com zonas de influência mental...
Aposto que a maioria das pessoas que leu o parágrafo anterior conseguiu imaginar o Vagante de acordo com a minha descrição, então vocês podem imaginar a força dele...
Voltando a minha desventura o maior erro que já cometi na minha vida veio a ser cometido naquele dia... Mudei minha refeição de baratas brilhantes para um belo corvo falante assado.
Um conselho crianças: Nunca comam ninguém em outra dimensão, pois é como fui saber só alguns dias depois: ”A morte é um reinício”.
Enfim, detalhando o fato:
Estava com um tanto quanto insônia e meu estômago roncava com violência porque minha insistência em ter nojo de baratas brilhantes não cessava, então cada vez comia menos, mas o cheiro me agradava e abria o apetite foi quando o corvo, em meio a um sono inquieto gritou:
– Me coma então!
A princípio eu explodi em gargalhadas, mas depois a vontade de obedecer foi irresistível.
Peguei aquele instrumento que usava para espetar as baratas e colocá-las na fogueira e o meti bem no pescoço de Lady Katerine que por conseqüência deu seu último grito estridente naquele corpo.
Usei as pernas dele para fazer uma fogueira e em seguida o fritei... Não é nenhum pedaço suculento de costela, mas serviu para me satisfazer por alguns dias, que passaram dois dias antes do imprevisto acontecer:
A semana estava pacata até então, era o nevoeiro tenebroso naquele pântano estranho de sempre sem uma alva viva nos mínimo por dois quilômetros, algo comum num morador dessa maldita dimensão.
Só estranhei alguns barulhos que se resumiam em passos e gemidos, como um lobo na imensidão da floresta, mas isso devia ser alguma loucura minha, por isso não dei importância a isso, além de que seria burrice ir caçar um lobo nessa dimensão. Se aqui corvos falam quem disse que lobos não soltam raios lasers pelos olhos?
Mas foi na noite em que voltava a vergonhosa janta composta pelos insetos luminosos que tenho tanto nojo que a merda foi completa meus amigos.
Escutei um tipo de grito esganiçado que já estava quase me familiarizando... Um frio me passou pela espinha. Ele havia voltado.
No momento que vi ele voando até mim eu não acreditei, era surreal demais, mas logo ele proclamou algo que nenhuma miragem poderia ter me dito e que geraria conseqüências muito piores:
– A morte é um reinício. Quando você morre você vai para outro lugar da dimensão para começar um tipo de vida nova que no Universo chamam de Céu, mas na Floresta Macabra, o espaço da dimensão é tão pequeno que eu posso voar de lá a cá em pouco tempo, mas não quando tiram sua alma, daí você esta predestinado a escuridão e é para isso que você irá agora. Se lembra do que falei sobre o erro fatal que originou a morte deles? Então, eu tenho uma pequena surpresa – disse Lady Katerine, acabando seus dizeres em um riso esganiçado que gelou até minha alma, que provavelmente perderia dali pouco tempo.
Havia uma mistura enlouquecedora de raiva e alegria doentia na face dele que foi reforçada com outro grito esganiçado, mas que era diferente dos outros que ele já dera, era quase como um chamado.
Sim, exatamente um chamado.
Em seguida ouvi aqueles malditos barulhos do que imaginava ser um lobo se aproximando cada vez mais de mim, ficando cada vez mais altos e com ecos quando eles chegaram à caverna, logo percebi que um lobo não podia fazer aquilo, era muito pesado, pareciam que pedras marchavam até mim, e, de certo modo, eu estava certo.
Uma música tribal começou a tocar na minha cabeça e quando ele aparece, a sim, quando ele apareceu, a música parecia ter se tornado minha trilha sonora fúnebre, ficando cada vez mais forte e sinestésica para mim, eu sentia os tambores fazerem cócegas no meu tímpano.
Como se para realçar a música Lady Katerine gritava:
– O erro foi fatal Lucas! O fim chega!
Agora além dos tambores e dos passos do o-que-achei-que-era-um-lobo também minha mente insistia em repetir incessantemente o que Lady Katerine gritou para mim.
“O erro foi fatal Lucas! O fim chega!”
Então ele chegou a mim.
O temido Vagante.
Algumas lágrimas de desespero surgiram o que só fodeu mais a minha visão que já era afetada desde meus 40 anos pela idade – eu tinha óculos, mas usava-o pouco por ficar feio... Daí meu pergunto feio para quem se eu já era casado?! –, assim o Vagante virou um borrão cinza de tamanho grande e Lady Katerine um pequeno borrão preto, mas havia minha estimada arma: o instrumento de espetar baratas.
Não teria sucesso algum tentando ir no corpo a corpo com a terrível mancha cinza que me invadia a visão, ainda mais com Lady Katerine pronto para dar suporte ao Vagante, logo planejei a pior fuga “inteligente” já feita. Jogar o instrumento e fugir.
E não é que deu certo?
Graças a algum Deus que provavelmente não existe o maldito corvo ficou paralisado com a situação e quando se deu por conta já estava no lago e, mesmo assim, não me seguiu, achando que o Vagante daria conta do trabalho, mas todo mundo subestima homens de meia idade sedentários desempregados, de classe média baixa e sem família, não?
Eu corri até o lago e depois parei – um tanto de culpa por estar cansado e outra de eu pensar seriamente em nadar no Lago Morto esperando que o Vagante não soubesse nadar, mas era o Lago Morto! Era nojento!
Ele chegou antes do que eu esperava, para o tamanho dele ele era bem rápido.
É nessas horas que a gente pensa fodeu, mas que se não improvisar realmente vai foder.
Tentava pensar, mas o “foder” na minha mente me impedia como um grito:
“E se... FODER
Mas se... FODER
FODER”
Então como num milagre eu acidentalmente fiz minha salvação: dei um grito esganiçado e milagrosamente o Vagante ficou confuso: Ele pensou que era a voz de Lady Katerine!
Dei um sorriso disfarçado do gênero que em desenhos animados seria acompanhado de uma lâmpada acesa na minha cabeça.
– Ele está na caverna. Ele é um transmorfo – disse eu tentando com sucesso repetir minha voz esganiçada e tirando um termo que não uso desde os meus tempos que linha revistas em quadrinhos: transmorfo.
Cego, burro e mal intencionado o Vagante me obedeceu.
Como tive certeza? Mais um grito esganiçado, como o do dia que matei Lady Katerine.
Esperei o Vagante voltar a sua floresta e sumir na sua imensidão como um bom monstro mitológico faz e nisso conclui três coisas:
1° O Vagante era cego
2°O Vagante era burro
3°O Vagante tinha algum tipo de habilidade de detectar sem ver, como dizem os jovens hoje, vai saber...
Lady Katerine não voltaria, pois de acordo com ele mesmo, quando a alma é comida pelo Vagante o corpo não pode retornar, mas ainda tinha o Vagante que decidiu dar meia volta após uma cagada minha:
Voltei a minha voz normal e soltei um cansado:
– Ufa.
O chão tremeu como se o Vagante detectasse mesmo que, provavelmente, longe a minha voz. Ia ter que esperar ele aparecer novamente dar um chega pra lá nele com a voz de Lady Katerine. Bem, foi o que eu imaginei.
Ele se aproximou, tentei não me intimidar, mas era impossível! Então minha voz, dessa vez, não esganiçou, mas sim sumiu.
Ele chegava numa velocidade surpreendente e eu não tinha mais escapatória ou alternativa, além de mergulhar naquele lago e esperar que eu não morresse intoxicado – se bem que se eu morresse, “reiniciaria” em algum lugar, mas não sabia aonde, porém qualquer lugar seria melhor que aqui.
Pulei sem nem ver a distância que o Vagante estava de mim e mergulhei adentro do desconhecido fedor molhado que sempre me intimidou.
De início o chão ainda era silencioso, parecia-me que o temido monstro sugador de almas tentava ter calma para conseguir me sintonizar. A pergunta era: quanto tempo ele demoraria até desistir?
Passava-se 10 segundos e ele ainda parecia estar tentando me rastrear. Já estava ficando aflito, perdendo oxigênio, esperando uma morte por asfixia ou a alma sendo sugada, então decidi explorar por aí para pensar em outra coisa, senão a minha falta de ar.
Pouco a pouco fui explorando a imensidão, porém não sabia quanto tempo resistiria, pois meus olhos ardiam como nunca doeram antes.
A LUZ!
Havia eu morrido e nem percebi?
Aproximei-me da luz e em seguida senti um alívio enorme: peixes brilhantes – estranho como pode haver tanta luz num lugar tão escuro, quase como um contraste.
O alívio foi sucedido pela visão mais aterrorizante que já tive em toda minha vida, havia achado o motivo para o meu apelidado Lago Morto ser chamado assim, pois literalmente haviam o que deviam ser milhares de mortos dentro do lago que agora era só um depósito aquático:
Vi pessoas uniformizadas de capacetes e óculos protetores, que, provavelmente, eram mineradores da mina onde Lady Katerine habitava enquanto tinha vida e que, também provavelmente, usavam aquele espeto de pegar baratas para algum motivo que eu, honestamente, desconhecia, quem sabe até coçar a bunda.
Mas o pior estava um pouquinho mais afundo. Não eram os possíveis habitantes dessa dimensão antes de o Vagante chegar que me assustavam, era que abaixo de tudo eu encontrei os outros pratos exóticos do Vagante, aqueles que vinham de outras dimensões para a compensação cósmica. Todos eram idênticos a mim!
Então veio a minha cabeça o que Lady Katerine tinha proclamado antes de chamar o Vagante:
“A morte é um reinício. Quando você morre você vai para outro lugar da dimensão para começar um tipo de vida nova que no Universo chamam de Céu, mas na Floresta Macabra, o espaço da dimensão é tão pequeno que eu posso voar de lá a cá em pouco tempo, mas não quando tiram sua alma, daí você esta predestinado a escuridão e é para isso que você irá agora”.
E se eles não tivessem dado a satisfação de morrerem nas mãos do Vagante e sim intoxicados? E se eu fosse um reinício? E se eu fosse um elemento Elemental para a fome do Vagante para ser um alvo tão procurado de compensação cósmica? Fosse como for, o melhor seria dar um reinício mais uma vez e deixar minha alma sair daqui. Agora sem Lady Katerine auxiliando o Vagante ele não duraria muito.
Eu seria mais um corpo na pilha de cadáveres omitida pela água escura do Lago Morto.
Como se fosse tudo esquematizado ouvi os passos do Vagante indo em direção a sua floresta, agora para ficar, pois ouvi passos com atitude, como se ele afirmasse para si mesmo: “Isso é paranóia minha, eu matei o humano”. Até sair da água para pegar um pouco de ar e me preparar para minha morte ele já estaria consideravelmente longe.
Fiquei com certa dor de ouvido pela pressão, mas era mais um incômodo na minha coleção que adquiriu 200 peças desde que cheguei aqui.
Após respirar fundo e vomitar o que seria o início de uma infecção provavelmente letal eu ouvi algo que me fez perder o fôlego novamente:
– Crów crów
QUE PORRA FOI ESSA!?
Eu jamais ia me esquecer do grito esganiçado de um corvo e isso, sem dúvidas, era um corvo.
Sem nem olhar para trás mergulhei no Lago Morto para que descansar no meu túmulo aquático.
Enquanto mergulhava, minha cabeça doía, meus ouvidos gritavam com a pressão, começava a sentir uma ânsia que, quem sabe, me acarretasse outro vômito, quem sabe muitas coisas estivessem a acontecer, mas quanto mais fundo ia mais pensava sobre aquele grito esganiçado que só poderia vir de um corvo.
Será que foi uma ilusão? Será que ele não tinha morrido? Será que aquele corvo era um dos parentes que Lady Katerine falou que haviam o deixado aqui?
Havia, porém, um pensamento que me agradava:
“ Seja como for estou indo para outro reinício da minha alma e seja como for só vou descobrir daqui a próximos 50 anos”.
FIM

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